"Hostile architecture" and the Father Julio Lancelotti Law

“Arquitetura hostil”, também conhecida como design urbano defensivo, refere-se ao emprego de componentes construtivos para orientar ou reprimir determinados comportamentos em áreas públicas. Este tipo de projeto, ao invés de simplesmente disponibilizar bancos, calçadas ou praças confortáveis, inclui estruturas que tornam desconfortável ou até mesmo inviável sentar, deitar ou simplesmente permanecer no local. A prática tem como alvo principal aqueles que mais necessitam do espaço público: pessoas em situação de rua, jovens, idosos e indivíduos com deficiência.

Em várias cidades do Brasil, observamos assentos com barras no meio (impedindo deitar-se), suportes metálicos em degraus e pedras sob pontes e viadutos. A razão oficial é “evitar atos de vandalismo” ou “evitar condutas impróprias”. No entanto, na realidade, essas medidas direcionam moradores de rua para esquinas e calçadas menos visíveis, gerando uma cidade de fachadas e exclusão. Esta arquitetura intensifica a segregação socioespacial e complica o direito de mobilidade de quem não possui um lar.

A manifestação do Padre Júlio Lancellotti

No ano de 2021, sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, na zona leste de São Paulo, a administração municipal implementou pedras afiadas para evitar a instalação de pessoas em situação de rua. Padre Julio Lancellotti, responsável pela Pastoral do Povo de Rua, respondeu com uma marreta: demoliu a barreira pública como um gesto simbólico de denúncia. A imagem se tornou viral e destacou que a cidade não é imparcial – pode excluir ou acolher, conforme o projeto.

Motivado por ações como a do padre Lancellotti, em 2021, o senador Fabiano Contarato propôs o Projeto de Lei no 488/2021, que modificava o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) para vedar métodos de arquitetura agressiva em locais públicos. A Câmara dos Deputados aprovou, e a Lei 14.489/2022, oficialmente conhecida como Lei Padre Julio Lancellotti, foi promulgada em 21 de dezembro de 2022, sendo vetada por Jair Bolsonaro e posteriormente restaurada pelo Congresso Nacional.

A legislação é inequívoca: “é proibido o uso de materiais, estruturas, equipamentos e métodos construtivos nocivos em áreas de uso público”. Estão proibidos dispositivos como pinos, bancos obstruídos e pisos propositalmente irregulares. O documento também estabelece que a cidade deve proporcionar conforto, acolhimento e qualidade de vida a todos, particularmente aos grupos mais vulneráveis, tais como crianças, idosos e pessoas em situação de rua.

Em dezembro de 2023, o governo federal emitiu um decreto regulamentando essa lei, definindo diretrizes para entidades federais e projetos financiados pelo governo federal. O decreto reitera a proibição de “métodos construtivos agressivos” e instrui os administradores municipais a incluir disposições de acessibilidade e “ambientes receptivos” em seus projetos de urbanismo. O decreto também estabelece a formação de equipes de planejamento urbano para detectar e erradicar práticas prejudiciais.

Efeito na vida dos indivíduos

Ao proibir a arquitetura hostil, a legislação estabelece padrões mínimos de conforto: assentos sem barreiras, calçadas niveladas e espaços para descanso. Para aqueles que residem nas ruas, isso representa a possibilidade de dormir com menos perigos — em marquises, praças e até em paradas de ônibus. Para passageiros, assegura assentos acessíveis. E, para todos, é importante lembrar que a cidade é de todos, não apenas de investidores ou turistas.

Apesar de a legislação ser federal, a criação de projetos urbanos é responsabilidade dos municípios. É responsabilidade de cada cidade incluir a proibição de técnicas agressivas em seus códigos de obras e posturas. Já foram anunciadas revisões no mobiliário urbano em algumas cidades-piloto, como Belém e Recife. Na cidade de São Paulo, especialistas da Secretaria Municipal das Subprefeituras supervisionam reclamações e eliminam pinos e estruturas interditadas.

Dificuldades na fiscalização

A implementação nem sempre é instantânea. Frequentemente, comerciantes independentes colocam pinos em degraus de edifícios históricos ou sob marquises. A legislação determina que entidades de supervisão urbana, tais como as guardas municipais, atuem de forma voluntária ou acatem denúncias. Contudo, diversos municípios carecem de equipes e recursos financeiros para inspecionar cada esquina.

Por outro lado, iniciativas de design urbano inclusivo se destacam. Em Curitiba, estão sendo experimentados bancos com encostos aconchegantes e formas sinuosas. No Rio de Janeiro, o IAB-RJ promoveu uma competição para a criação de protótipos de mobiliário público projetado para todos os corpos, sem distinção de qualquer natureza. Essas ações demonstram que é viável combinar segurança com conforto.

No Art. 6º, a Constituição Federal assegura o direito à habitação e ao bem-estar social. Se os espaços públicos devem ser acessíveis a todos, cabe aos arquitetos e urbanistas a obrigação ética de criar cidades que se adaptem aos corpos e aos hábitos de cada indivíduo. A Lei Padre Júlio Lancellotti enfatiza que o ambiente urbano não é imparcial — pode promover a coexistência ou legitimar a exclusão.

Habitantes, ativistas e estudiosos podem contribuir para a aplicação da lei através de denúncias, propostas de aprimoramento e participação em audiências públicas. Surgiram aplicativos de mapeamento colaborativo para documentar áreas de arquitetura hostil, possibilitando que administradores identifiquem e resolvam áreas problemáticas.

Para onde vamos

A proibição de métodos agressivos de construção é apenas o começo. Precisamos alterar mentalidades e reconhecer a cidade como um bem coletivo. As cidades podem estabelecer selos de “urbanismo receptivo” para empreendimentos públicos e privados. Iniciativas de educação urbana em escolas e Centros de Referência de Assistência Social contribuem para a formação de cidadãos cientes de seus direitos e responsabilidades.

A Lei Padre Julio Lancellotti é um divisor de águas na luta por um espaço público receptivo e acolhedor. Ao evitar práticas de exclusão arquitetônica, ela pavimenta o caminho para cidades mais democráticas, onde todos, independentemente de terem moradia ou não, possam exercer sua cidadania. É hora de remover os pinos, nivelar as calçadas e construir bancos de todos os tipos. Afinal, a cidade pertence a quem a habita e aspira.

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Cláudio Cordovil is a journalist and public health researcher with a career marked by active listening and a commitment to social rights. He worked for decades in the mainstream press and today investigates structural inequalities, focusing on marginalised populations such as people living with rare diseases. He has been a civil servant at Fiocruz since 2015. He is the editor of the newsletter "Bioethics for All People" and creator of the blog "Academia de Pacientes". In Solidaritas, Cláudio writes about those who live on the margins but deserve to be at the centre of public policies. He seeks to expose the gears of urban exclusion with a journalistic eye and social listening. He believes that information is shelter and words are a tool for justice. He has a PhD in Communication and Culture. He lives in Rio de Janeiro, but writes with his feet on the street.

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