“Hoje eu ando cheiroso, limpo, com identidade”


“Me chamo Kleidson Oliveira Beserra. Fiquei quase seis anos na rua, de 2005 a 2011.” A apresentação parece simples, mas carrega uma virada profunda: por muito tempo, ele sequer era chamado pelo nome. “Eu só era chamado de Radiola. O Radiola era um cara insignificante. O Kleidson não.” O apelido pejorativo vinha por conta de uma deficiência em seu braço, que lembrava, por seu posicionamento, o braço de uma vitrola.

A rua, diz ele, ensina. Ensina dureza. Ensina medo. Mas também revela gestos de humanidade inesperada. “As pessoas que não têm condição nenhuma, essas têm empatia. Ofertam mais do que possuem.”

A rua e o que ela ensinou

“Ninguém escolhe viver na rua”, afirma. “Mas um conjunto de escolhas erradas pode te levar ao fundo do poço.” No período em que viveu exposto, aprendeu a distinguir dois tipos de ajuda: a que vem de coração e a que vem com interesse. “Tem a solidariedade industrializada, que vai para a rua esperando retorno. Isso dissipa a política pública.”

Pela convivência, percebeu que a escuta é o verdadeiro recurso transformador. “As pessoas que mais ajudam são as que têm escuta qualificada.”

O estigma e o nome recuperado

Mesmo precisando de cuidado, evitava buscar o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do próprio bairro: medo do rótulo. “Diziam que lá era lugar de doido, de drogado.” Procurou atendimento longe de casa e encontrou o oposto do estigma: acolhimento. “Fiquei 30 dias sem usar substância. Isso me deu força.”

A partir dali, começou a substituir o vício por outra coisa: “liberdade”.

O encontro que virou recomeço

No meio do desamparo, encontrou também sua companheira, Brenda, uma jovem mulher marcada por violência e desesperança. “Eu estava num suicídio lento. Ela também.” A relação surgiu como pacto de sobrevivência mútua. “Cuidar de alguém foi a melhor coisa que aconteceu comigo.”

Os dois se fortaleceram na rua e decidiram, juntos, sair dela. “Eu não queria que ela passasse pelo que eu passei. Resolvi dar um teto para ela.”

Hoje, a vida inclui filhos e rotina com cheiro de pertencimento. “Eu ando cheiroso, arrumado, limpo. Tenho identidade. Sou referência.”

Atualmente, Kleidson é articulador da Escola Nacional PopRua, uma iniciativa do Núcleo de Populações em Situação de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica (NUPOP/Fiocruz)

Quando o cuidado funciona

O acolhimento vivido na saúde mental marcou sua percepção sobre mudança. “O indivíduo tem que querer. Não existe milagre. Mas a rede de apoio sustenta o processo.” A decisão de sair exigiu motivos fortes. “Um dos fatores importantes foi a família. Outro, proteger alguém.”

As rodas de conversa do CAPS também deixaram impressões. “Sempre tem alguém que defende o SUS, defende a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Isso emociona, porque reconhece profissionais que realmente ajudam.”

Outras memórias que não se perdem

Entre episódios marcantes, Kleidson lembra o dia em que salvou uma menina do afogamento no Espírito Santo. “Segurei pelo peito, senti o coração dela batendo forte e rápido.” Pensa nela até hoje, imaginando quem pode ter se tornado.

Por que políticas públicas falham

Kleidson tem diagnóstico preciso da política para a PopRua: falta continuidade, escuta e presença de quem viveu a rua. “Dão uma marmita e abandonam o cara. Não tem acompanhamento.” O problema, diz, se agrava quando organizações terceirizadas operam sem participação de egressos. “Contratam pessoas de fora que não têm empatia. A política não é efetiva.”

A partir dessa vivência, criou, com sua esposa e outros companheiros, o Instituto Pop Rua Brasil. “Primeira instituição criada por indivíduos nascidos na rua. Tudo veio da vivência. Agora é aguardar o CNPJ para começar a atuar.”

E agora?

“Hoje eu vejo mais as coisas do que antes”, diz. Ao olhar para os próprios filhos (três), redescobre razões para continuar. “Eu acordo, dou beijo no meu pequenininho (Mateus, na foto com ele). A vida é muito boa.”

A luta agora é coletiva: a defesa dos direitos da população em situação de rua e o fortalecimento de políticas completas, não fragmentadas. “A gente continua. A gente não desiste.”


Nota ética

Esta reportagem se baseia integralmente no depoimento concedido por Kleidson Oliveira. O Solidaritas adota práticas de escuta qualificada, respeito à autonomia narrativa e compromisso explícito de não reproduzir estigmas associados à população em situação de rua.


Laisser un commentaire

erreur : Le contenu est protégé !
fr_FRFR
Jornalismo público sobre população em situação de rua e vulnerabilidade social
Jornalismo público sobre população em situação de rua