Muito além do rock: ‘Aqualung’ e a crítica social que atravessou gerações

Minha história com o rock começa em 1973, aos 11 anos de idade. O rock tem sido uma paixão desde então. Meu primeiro disco de rock foi um de Alice Cooper, com o sugestivo título Muscle of Love, não recomendável para menores. Não era dos melhores, hoje sei, mas era o começo de uma longa trajetória.

Nessa época, também conheci a lendária estação de rádio FM, Eldopop (98,1MHz). Algo inédito para aqueles tempos; era uma rádio rock sem locutores, com 19 horas diárias de puro rock e poucos intervalos comerciais. 

Em sua programação despontava Aqualung, da banda inglesa Jethro Tull, certamente uma das melhores descrições musicais das percepções que “as pessoas de bem” carregam sobre a população em situação de rua. 

Aqualung (letra original aqui) é a faixa-título do quarto álbum de estúdio do Jethro Tull. Lançado em 19 de março de 1971, é considerado um dos marcos mais importantes do rock progressivo britânico.

Ian Anderson , líder da banda, a compôs, com letra em parceria com Jennie Franks, sua mulher, que na ocasião fotografara pessoas em situação de rua para um trabalho escolar, em Londres.

Anderson já declarou que Aqualung é menos sobre as pessoas que vivem na rua e mais sobre a reação que a sociedade tem em relação aos sem-teto: sentimentos de medo, desconforto, compaixão e julgamento. 

O título da canção faz referência ao som característico da respiração dos mergulhadores, sendo também a marca comercial de um equipamento de mergulho autônomo. E aqui funciona como metáfora da dificuldade respiratória de seu personagem, acometido que é por doenças respiratórias características de pessoas em situação de rua. Já houve quem aproveitasse o mote de Aqualung para redigir artigo médico sobre enfermidades comuns a estas pessoas, como edema pulmonar e transtornos mentais.

A letra de Aqualung

Letra e temática

A canção, em sua primeira parte, fala de um homem velho, doente, solitário, e, naturalmente, marginalizado, que observa o mundo à sua volta, onde destacam-se crianças a brincar, num póetico contraste entre inocência e decadência.

Na segunda parte, o narrador aproxima-se de Aqualung com um olhar empático, chamando-o de “amigo” e assim reconhecendo sua humanidade, algo que o liga a nós, mas que muitos apreciam ignorar.

A terceira e última parte parece evocar a morte de Aqualung, com alusões a “último suspiro” e ao fato de a vida continuar mesmo após sua partida.

Religião, hipocrisia institucional, desigualdade social e alienação são temas recorrentes ao longo de todo o álbum Aqualung.

O disco vendeu mais de sete milhões de cópias em todo o mundo e figura entre os melhores álbuns de todos os tempos, tendo influenciado Iron Maiden, Pearl Jam e Nick Cave, e sido um ponto de virada na carreira da banda. Sua complexidade musical, alternando entre riffs pesados de guitarra e trechos acústicos delicados, quase barrocos, tem sido destacada por analistas.

Relançado diversas vezes, o álbum teve uma reedição com uma versão integral ao vivo gravada para a rádio XM, em 2004, com renda revertida para instituições que trabalhavam com pessoas em situação de rua.

Em 2021, foi lançado um videoclip comemorativo dos 50 anos da canção, de autoria de Sam Chegini, que você pode ver mais acima neste post.

Mais de meio século se passou desde que Ian Anderson soprou sua flauta para dar voz ao velho no banco do parque. E, ainda hoje, Aqualung respira — com dificuldade, é verdade — entre os vãos da cidade, entre nossos olhares desviados, entre as guimbas de cigarro esquecidas no chão. Talvez seja hora de, como o narrador da canção, nos aproximarmos sem medo. E dizermos, com humanidade: “Aqualung, meu amigo… você vê? Sou só eu.”

1 comentário em “Muito além do rock: ‘Aqualung’ e a crítica social que atravessou gerações”

  1. o tema dos “bumps” – clochards, na terminologia francesa – incendiou um certo imaginário pós-hippie dos anos 70 do qual fizeram parte algumas bandas (Tull, Genesis (selling England by the Pound) principalmente no mundo inglês que caminhava para o neoliberalismo thatcherista que acabou gerando o contra-movimento punk. Diria que eram então somente os jovens os que tinham sensibilidade para perceber o crescimento mundial do liberalismo mais atroz que faria histórias trágicas no Chile e na Argentina. E lá, também, (e, se procurarmos, aqui também) a música do momento se preocupou com esta questão. Talvez isso faça parte da perenidade desse hit da segunda metade do século vinte.

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