Mulheres em situação de rua: cuidado integral, maternidade e proteção social

A mesa “Mulheres em Situação de Rua: Cuidado Integral, Maternidade e Proteção Social na Perspectiva da Equidade de Gênero e Raça”, realizada no Seminário Internacional sobre População em Situação de Rua: Cuidado Integral e Direitos Já, na Fiocruz Brasília, reuniu três vozes fundamentais para compreender como gênero, raça e classe moldam a experiência de mulheres em situação de rua.

As exposições de Florencia Montes Paez, Yara Flor Richwin e Joana D’arc Bazílio revelaram que a maternidade pode ser simultaneamente território de violência institucional e motor de reorganização subjetiva. Elas apontaram a urgência de políticas que assegurem o cuidado integral, reconheçam a pluralidade das maternidades e combatam a racialização da pobreza, que resulta em interdição sistemática de vínculos familiares.

Florencia Montes Paez: cuidado desde as próprias trajetórias

Florencia Montes Paez apresentou a organização transfeminista argentina “Não Tão Distintas”, formada por mulheres, pessoas trans e dissidências que viveram ou vivem nas ruas. A entidade mantém ações de acolhimento e autonomia que incluem um centro de dia e o projeto La Madre Que No Fui (voltado a mulheres que perderam a guarda de seus filhos). Além disso, oferece acompanhamento individual para demandas de saúde e processos legais, duas casas comunitárias, um núcleo produtivo de encadernação, formações sobre acompanhamento transfeminista e uma editora própria, responsável pelo livro Acompanhar é político.

Florencia explicou que a organização possui quatro camadas de atuação: assistência direta nas ruas, criação de espaços próprios para mulheres e dissidências, atuação institucional em políticas públicas e autogestão. São camadas coexistentes, não etapas lineares. Todas expressam respostas concretas à violência, à exclusão e à pobreza.

A confluência regional Rutas Ruas Transfeministas Sudacas, parceira da Rede Rua no Brasil, busca criar um corredor político latino-americano para abordar gênero e situação de rua desde o Sul global.

Em sua exposição, Florencia afirmou que o transfeminismo não se limita à defesa de identidades, mas propõe outra forma de acompanhar: compartilhando a dimensão dolorosa, complexa e frequentemente frustrante do cuidado. Trata-se de construir vínculos sem romantização da rua, reconhecendo os desafios reais e a necessidade de autonomia.

Com a crise econômica da Argentina, a sustentabilidade dos espaços comunitários tornou-se crítica. Florencia pediu apoio e divulgação, destacando que a força da organização vem do vínculo entre suas integrantes, pois ali há amor e acolhimento.

Yara Flor Richwin: maternidade como abertura subjetiva

A psicóloga Yara Flor Richwin apresentou resultados de dois anos de pesquisa e atendimento territorial em saúde mental. Embora a maternidade não fosse foco inicial, emergiu de forma recorrente na escuta de mulheres em situação de rua. Segundo Yara, a maternidade aparece como momento decisivo, atravessado por dor, violência, possibilidades de transformação e reorganização da vida.

Para compreendê-la, Yara recorreu ao conceito de “hierarquias reprodutivas”, que distingue maternidades valorizadas e maternidades desqualificadas. Nas ruas, as maternidades de mulheres negras e pobres são sistematicamente interditadas. Elas são associadas automaticamente à incapacidade, uso de drogas ou crime. Essa lógica sustenta separações familiares, ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente proíba rompimentos motivados por vulnerabilidade socioeconômica.

Yara destacou que a gestação e o puerpério produzem aberturas subjetivas que favorecem vínculos, redes afetivas e reorganização de projetos. Muitas mulheres interrompem o uso de drogas, deixam o crime, buscam apoio e projetam novos futuros. A maternidade, para elas, não é apenas locus de opressão, mas oportunidade de reconstrução.

Diante do risco de separação, mulheres desenvolvem estratégias de resistência. Em geral, acionam arranjos ampliados de cuidado com avós, tias e redes comunitárias, práticas enraizadas em tradições afro-indígenas. Isso rompe a expectativa de cuidado centrado na mãe e revela maternidades compartilhadas, sem que o vínculo simbólico se fragilize.

Para Yara, reconhecer essas práticas requer abandonar visões moralizantes e compreender a maternidade como exercício político de invenção e resistência.

Joana D’arc Bazílio: maternidade como afirmação de potência

Joana D’arc Bazílio, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e do CIAMP-Rua Nacional, apresentou sua trajetória como mulher preta com experiência direta de rua. Ela ressaltou que, embora hoje ocupe espaços institucionais, sua legitimidade depende de permanecer em diálogo com mulheres nos territórios, escutando suas demandas de forma contínua.

Sua saída das ruas foi impulsionada pela maternidade. Em um momento de extrema vulnerabilidade, cogitou entregar seu filho, acreditando não ter condições de cuidar dele, ideia alimentada pela violência simbólica de ser constantemente considerada incapaz. Ao tornar-se mãe, entretanto, reconstruiu sua trajetória e hoje cria sozinha quatro de seus oito filhos.

Joana relatou ter sido diagnosticada como incapaz por um psiquiatra, o que reforçou a interdição institucional de sua maternidade. Contestou o processo afirmando que apenas quem enfrenta gestação e parto poderia julgá-la enquanto mãe.

Sua prática cotidiana é criar meninas negras empoderadas, ensinando-as a reconhecer valor e direitos. Para ela, ocupar espaços institucionais é menos sobre poder e mais sobre garantir que políticas sejam formuladas ouvindo mulheres diretamente afetadas.

Relatou o marco do primeiro Encontro Nacional de Mulheres em Situação de Rua, organizado por mulheres negras com trajetória de rua. O encontro afirmou a presença política dessas mulheres e reforçou a necessidade de políticas específicas.

Joana concluiu que sua luta não é por protagonismo, mas por transformação. Mulheres em situação de rua devem ocupar espaços porque são potência: ninguém melhor do que elas para construir políticas que acolham e garantam futuro.

Convergências

As três falas convergem em pontos centrais. A maternidade é campo de disputa social, política e institucional. A violência estrutural, impulsionada por racismo, classe e gênero, interdita maternidades negras e pobres. Mulheres resistem, criando arranjos de cuidado compartilhado e projetos de autonomia. O cuidado integral exige vínculo, escuta e reconhecimento das trajetórias. Políticas devem ser construídas com participação direta das mulheres, valorizando sua agência.

A mesa mostrou que proteger mulheres em situação de rua implica abandonar abordagens punitivas e reconhecer a maternidade como espaço de invenção, autonomia e luta por direitos. O cuidado integral acontece quando a política é feita com elas. A rua pode ser território de violência, mas também de reinvenção.


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