
Foram dois dias intensos na Fiocruz Brasília (22 e 23 de outubro). Debates, experiências e vozes que mostraram por que cuidar é reconhecer. Aqui, você acompanha uma série de matérias exclusivas sobre o Seminário Internacional Pessoas em situação de rua: cuidado integral e direitos já.
A mesa “O papel da Justiça na atuação junto à população em situação de rua”, realizada no dia 23 de outubro, no Seminário Internacional sobre População em Situação de Rua: Cuidado Integral e Direitos Já, na Fiocruz Brasília, reuniu operadores do Direito e pesquisadores para expor limites, contradições e possibilidades do sistema de justiça diante da violação crônica de direitos fundamentais. A conversa partiu da constatação de que o Judiciário chega sempre tardiamente, quando já houve falha de todas as outras esferas estatais e sociais.
O Judiciário como última linha
Mediador da mesa, o advogado e pesquisador Igor Rodrigues abriu a discussão destacando a gravidade do cenário. Segundo ele, quando uma demanda envolvendo a população em situação de rua chega ao Judiciário, significa que todas as etapas anteriores de proteção e cuidado já falharam. Trata-se da última trincheira da cidadania, acionada quando os demais mecanismos não responderam.
Rodrigues alertou para o que chamou de “redentorismo do Judiciário”, a crença de que o sistema judicial poderia resolver, sozinho, a profunda crise social que empurra milhares de pessoas para a rua. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sobre população em situação de rua, ajuizada apenas em 2023, foi lembrada como exemplo: embora celebrada, chegou mais de 15 anos depois da iniciativa semelhante na Colômbia, o que demonstra lentidão estrutural na reação institucional brasileira.
O pesquisador também chamou atenção para o uso superficial do termo “multicausal” para descrever o fenômeno da população em situação de rua. Para ele, dizer que o problema é multicausal não explica nada se não se encara sua raiz: o colapso da capacidade do capitalismo contemporâneo de incluir as pessoas via trabalho e cidadania. Nesse contexto, a população em situação de rua expõe a fissura do sistema, pois não é incorporada ao circuito de valor, tornando-se descartável.
Rodrigues defendeu que a situação de rua é o principal espelho da crise social brasileira. Segundo ele, o país produz “tsunamis de descarte humano”, fenômeno visível em grandes e pequenas cidades, e a população de rua é o objeto que conecta fracassos públicos, ausência de alternativas e aprofundamento das desigualdades.
PopRuaJud e a quebra de barreiras
A juíza federal Luciana Ortiz, coordenadora do Comitê PopRuaJud do CNJ, reforçou a leitura de Rodrigues, mas voltou o foco para as fronteiras do próprio Judiciário. Para ela, embora o sistema não deva assumir o papel do Executivo, não pode se omitir diante de um “estado incondicional de coisas”, expressão usada para descrever a completa ausência de direitos para essa população.
Ortiz destacou os obstáculos concretos para o acesso à justiça. A ausência de documentação civil permanece como barreira central: sem identidade ou comprovante de residência, grande parte das pessoas em situação de rua sequer consegue ingressar fisicamente em tribunais. Some-se a isso a exclusão digital, agravada pelo funcionamento predominantemente virtual do Judiciário. Em muitos casos, relatou, pessoas são barradas à porta de fóruns por estarem de chinelo ou bermuda.
A magistrada apresentou a Resolução 425/2021 do CNJ, que instituiu a política judicial de atenção às pessoas em situação de rua. A norma, elaborada em processo coletivo com movimentos sociais e organizações civis, definiu eixos de ação que incluem emissão de documentação civil, fluxos processuais permanentes, trabalho em rede e governança articulada nos estados.
Ortiz relatou ainda os avanços na criação de comitês estaduais PopRuaJud em todo o país. Para ela, a atuação em rede é essencial porque a prestação jurisdicional jamais será suficiente se isolada. A emissão de documentos durante mutirões é vista como ação concreta de cidadania capaz de destravar o acesso a benefícios sociais, aposentadorias e outros direitos. Casos recentes ilustram os efeitos dessa atuação, incluindo concessão de benefício assistencial com valores retroativos expressivos para pessoas em situação de rua.
A juíza citou iniciativas para enfrentar questões estruturais, como o fluxo destinado a pessoas recém-egressas do sistema penal, que muitas vezes migram diretamente para as ruas por falta de alternativas. Também mencionou a gravidade das ações institucionais de retirada de bebês de mães em situação de rua, prática que classificou como uma das mais impactantes e urgentes.
A moradia como motor de direitos
A promotora Giovanna Mello, do Ministério Público, levou à mesa a centralidade do direito à moradia como eixo estruturante de todos os demais direitos. Segundo ela, o acesso à moradia é o que possibilita o exercício efetivo de outras garantias, como saúde, educação e proteção social.
Mello relatou casos que revelam a impossibilidade material do cumprimento de recomendações de saúde por pessoas em situação de rua. Pacientes com tuberculose, por exemplo, recusavam tratamento porque sabiam que seus efeitos colaterais seriam vivenciados nas ruas, sem qualquer suporte, e não porque rejeitassem o cuidado.
A promotora destacou a importância da atuação do Ministério Público na mediação com programas habitacionais. Ela relatou experiências que permitiram inserir grupos de pessoas em situação de rua em programas de moradia, mesmo diante da lógica de deslocamento para regiões periféricas, historicamente criticada por romper vínculos territoriais. Soluções mais recentes, como a democratização de imóveis da União, foram apontadas como alternativas para garantir moradias centrais, próximas às redes de apoio.
Mello alertou ainda para o risco de desligamento precoce dessa população dos serviços da rede socioassistencial após o acesso a uma moradia. Para ela, essa fase representa “superação da rua”, o que exige manutenção do suporte. Sem isso, o retorno às ruas se torna muito provável.
A promotora lembrou que a ausência de censos nacionais atualizados compromete a formulação de políticas adequadas. Ao mesmo tempo, destacou a importância da fiscalização dos equipamentos destinados à população em situação de rua, apontando que muitos deles estão superlotados e frequentemente inadequados, especialmente quando acolhem pessoas idosas que exigem cuidados específicos.
O período da pandemia foi mencionado como exemplo extremo da negligência histórica. Mello relatou o estranhamento de moradores ao verem pessoas em situação de rua tentando acessar serviços básicos durante o período de isolamento. Ao mesmo tempo, chamou atenção para a rapidez com que improvisos foram acionados quando o enfrentamento da pandemia exigiu ação imediata, defendendo que essa agilidade deveria se tornar regra, não exceção.
Nome, história e sobrevivência
Encerrando a mesa, a juíza Raquel Chrispino, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, trouxe ao debate a perspectiva da documentação civil como base do exercício de todos os direitos. Sua apresentação partiu de uma experiência de mais de uma década com emissão de documentos em territórios vulnerabilizados, incluindo a atuação em um ônibus itinerante dedicado à erradicação do subregistro.
Chrispino explicou que o registro civil é um direito humano em si mesmo. Ele acessa dimensões essenciais: nome, filiação, nacionalidade, ancestralidade e ciclo da vida. Falhas nesse registro geram apagamento biográfico, afetando a subjetividade. Em muitos casos, afirmou, pessoas eram registradas décadas depois do nascimento e choravam ao receber o documento, não por acesso a benefícios, mas porque recuperavam a história.
A juíza detalhou ainda a chamada “cadeia documental”. Antes, a emissão de um documento dependia de outro, criando um labirinto burocrático que perpetuava a exclusão. A Carteira de Identidade Nacional, segundo ela, simplifica parte dessa cadeia ao integrar outros registros e facilitar o acesso a direitos sociais.
Chrispino destacou também desafios relacionados ao registro de óbitos. Pessoas em situação de rua frequentemente morrem sem documentação, sem registro de óbito e sem possibilidade de serem veladas por seus pares ou familiares. A juíza apontou esse apagamento final como violação de direitos humanos e destacou decisões que permitem a liberação de corpos a amigos que desejam realizar ritos fúnebres.
Ao final, Chrispino defendeu mudanças de fluxo e governança capazes de tornar o Judiciário mais acessível, humano e eficiente. Para ela, trabalhar em rede e enfrentar o subregistro é condição mínima para garantir o acesso à cidadania.
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- Mesa redonda internacional: Que mundo é esse? Realidades e possibilidades de transformação para proteção social da população em situação de rua
- Painel I : Não somos invisíveis: informações para as políticas públicas
- Painel II : Mulheres em situação de rua: cuidado integral, maternidade e proteção social na perspectiva da equidade de gênero e raça
- Trilhas convida: Pe. Júlio Lancellotti
- Painel III:
O direito à proteção social e ao cuidado em saúde no Brasil.
Cobertura do dia 23 de outubro de 2025
- Painel IV : Experiências de cuidado I
- Painel V: Experiências de cuidado II
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- Mesa-redonda: Desafios e potências do plano Ruas Visíveis como estratégia de política pública – CIAMP/RUA nacional
Legenda da foto: Da esquerda para a direita, Raquel Chrispino; Luciana Ortiz; Igor Rodrigues e Giovana Mello .













