Morar na rua não é escolha: desafios e avanços no cuidado à população em situação de rua

Foram dois dias intensos na Fiocruz Brasília (22 e 23 de outubro). Debates, experiências e vozes que mostraram por que cuidar é reconhecer. Aqui, você acompanha uma série de matérias exclusivas sobre o Seminário Internacional Pessoas em situação de rua: cuidado integral e direitos já.

A manhã do segundo dia (23/10) do “Seminário Internacional sobre População de Rua: Cuidado Integral e Direitos Já” foi dedicada à apresentação de experiências de cuidado distribuídas pelo país. Na ocasião, especialistas debateram políticas integradas de saúde, assistência e moradia para população em situação de rua, ressaltando a urgência de respeito à dignidade e enfrentamento das desigualdades sociais.

Da convivência respeitosa em São Paulo ao fortalecimento da atenção primária no Rio e à articulação nacional de políticas públicas, o evento destaca experiências que apontam para uma abordagem integral, intersetorial e antirracista.

Alderão Costa: Convivência e dignidade como base do cuidado

Alderão Costa, da Rede Rua de São Paulo, enfatizou que morar na rua não é uma escolha, mas resultado das desigualdades estruturais. Ele destacou a importância da convivência prolongada e da escuta ativa para construir vínculos que promovam sutis mudanças significativas. Resgatou a experiência histórica da Organização de Auxílio Fraterno (OAF) e do trabalho de Dom Paulo Evaristo Arns, que investiu em centros comunitários para a população pobre durante a ditadura militar.

Criticou medidas punitivas, como expulsões e cercas em espaços públicos, que criminalizam a população em situação de rua. Costa trouxe à tona dados importantes, como o percentual de 3% de indígenas na população de rua de São Paulo, e ressaltou a importância de publicações como o jornal O Trecheiro para preservar a memória e visibilidade do grupo. “A rua não é uma escolha, não é” foi sua frase central, correlacionada à necessidade de políticas públicas focadas na acolhida, escuta e respeito à autonomia.

Superintendência de Saúde Mental do Rio: Integração entre saúde e moradia

O superintendente de saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Hugo Fagundes, destacou o modelo implantado após a reforma psiquiátrica, que incluiu fechamento de hospitais e criação de residências terapêuticas. Segundo ele, a população em situação de rua enfrenta sofrimento extremo e barreiras significativas para acessar serviços. Ele apresentou o Programa de Atendimento Rápido (PAR), que fornece estrutura 24h com higiene e roupas, e citou o projeto experimental de moradias segundo o modelo Housing First (Moradia Primeiro), com previsão de expansão para 100 repúblicas em 2026. Ainda revelou a existência de 7.869 pessoas atendidas e 892 acolhidas atualmente no sistema, segundo prontuário eletrônico. Enfatizou princípios da reforma psiquiátrica como cuidado em liberdade, baixa exigência e redução de danos, reforçando, “É para o sofrimento que a gente trabalha.” Ressaltou também os desafios políticos e sociais na continuidade e sustentação dessas iniciativas.

Daniel de Souza: Consultórios na rua e combate ao estigma racial

Daniel de Souza, da Rede Nacional de Consultórios na Rua, revelou os desafios diários de 300 equipes em todo o Brasil que atuam no cuidado da população em situação de rua, enfrentando estigmas e preconceitos, inclusive dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao problematizar o estereótipo midiático que associa a população de rua majoritariamente ao uso problemático de drogas, ele defendeu a complexidade e diversidade da população assistida.

Reforçou a crucial questão racial: 87% das pessoas em situação de rua são negras ou pardas, percentual muito superior ao da população geral (56%), refletindo desigualdades históricas. Daniel também alertou para a “arquitetura hostil” em espaços públicos que impede a permanência digna dessa população. Destacou iniciativas que promovem direito à cidade, afeto e pertencimento social como formas fundamentais de inclusão. “A rua tem cor,” concluiu, apontando para a necessidade de políticas que combinem combate ao racismo institucional e ampliação da rede intersetorial de apoio.

Maria Caetano: Vila Reencontro, moradia transitória e inclusão social

Maria Caetano, coordenadora do programa Vila Reencontro em São Paulo, apresentou o projeto lançado em 2023 que oferece moradia transitória pautada em cuidado integral, articulação intersetorial e fortalecimento comunitário. A iniciativa funciona por meio de módulos residenciais equipados para famílias de diferentes tamanhos, incluindo adaptação para pessoas com deficiência, com alta taxa de ocupação (96%).

O programa estrutura-se em três eixos: cuidado (atendimento individual e familiar), conexão (fortalecimento de vínculos comunitários) e oportunidade (inclusão socioeconômica e qualificação profissional). Destacou a importância da participação ativa dos moradores em coletivos internos e feiras de empreendedorismo, fomentando autonomia e cidadania. A moradia transitória é apresentada como a âncora para reconstrução das vidas, inspirada no modelo Housing First (Moradia Primeiro). “Construindo caminhos de dignidade e autonomia para a população em situação de rua” sintetiza sua proposta, cujo impacto depende da continuidade e expansão do modelo.

Lília Gonçalves, Ministério da Saúde: Gestão participativa e fortalecimento da atenção primária

Lilian Gonçalves, da Coordenação de Acesso e Equidade da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, destacou a reativação do Comitê Técnico Nacional de Saúde para a população em situação de rua, promovendo diálogo sistemático com movimentos sociais e ampliando a gestão participativa.

Ela enfatizou que o cuidado deve extrapolar as equipes de consultórios na rua, integrando toda a atenção primária e rede de saúde para um cuidado longitudinal e integral. Ressaltou os desafios da aporofobia (medo a pobres) e outros preconceitos que persistem na prática dos serviços, apesar das normativas vigentes.

Informou o crescimento de equipes de consultório de rua de 222 em 2023 para a previsão de 320 equipes em 2025, embora sob incertezas orçamentárias.

Tratou ainda da inovação dos consultórios móveis, unidades físicas destinadas a melhorar o atendimento especializado, com previsão de início em 2025. O lançamento de cursos de educação popular para profissionais do cuidado busca qualificar e humanizar o atendimento. “É um espaço consultivo de articulação e produção de consenso, de uma escuta ativa da gestão,” sintetizando assim a importância desses processos para fortalecer a política nacional.

Esta seção do seminário internacional reuniu vozes fundamentais para pensar a população em situação de rua como parte integrante e legítima da cidade, destacando que “a rua não é uma escolha”.

Desde as práticas de convivência respeitosa e fortalecimento de vínculos afetivos até modelos intersetoriais que integram saúde, assistência social, moradia e inclusão produtiva, as intervenções evidenciaram avanços e desafios.

Ressaltaram-se também as dimensões históricas de exclusão racial e social, que demandam enfrentamentos estruturais.

A interlocução entre movimentos sociais e gestão pública mostrou-se indispensável para construir políticas que vão além do assistencialismo, buscando a autonomia e o direito à cidade.

Contudo, persistem lacunas quanto à avaliação dos impactos de longo prazo e à superação das barreiras institucionais e sociais, indicando caminhos prioritários para formulação e implementação de políticas públicas mais eficazes e humanizadoras.


Leia também

Cobertura do dia 22 de outubro de 2025

Cobertura do dia 23 de outubro de 2025

Deixe um comentário

error: Content is protected !!
pt_BRPT_BR
Jornalismo público sobre população em situação de rua e vulnerabilidade social
Jornalismo público sobre população em situação de rua