
Foram dois dias intensos na Fiocruz Brasília (22 e 23 de outubro). Debates, experiências e vozes que mostraram por que cuidar é reconhecer. Aqui, você acompanha uma série de matérias exclusivas sobre o Seminário Internacional Pessoas em situação de rua: cuidado integral e direitos já.
No Seminário Internacional sobre População de Rua: Cuidado Integral e Direitos Já, realizado na Fiocruz Brasília, nos dias 22 e 23 de outubro, quatro lideranças participaram. Janine Melo (MDHC), Maria Luiza Gama (MDHC), Sheila Costa Marcolino (CIAMP-Rua Nacional) e Laureci (Laura) Dias (CIAMP-Rua Nacional) expuseram as contradições, potências e lacunas do Plano Ruas Visíveis. Esta é a principal estratégia federal para enfrentar a violência e a reprodução da vida nas ruas. O conjunto das falas evidenciou uma mesma fratura. A política existe no papel, mas ainda não está enraizada na materialidade dos territórios. Sua capacidade de mudar o cotidiano de quem vive nas calçadas permanece limitada pela fraca articulação federativa, baixa integração ministerial e ausência efetiva de participação social estruturante.
“Com a rua, e não para a rua” a narrativa oficial e seus limites
Maria Luiza Gama, diretora de Políticas para a População em Situação de Rua do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), contextualizou o arcabouço institucional que dá sustentação à política nacional. Resgatou o Decreto 7.053/2009, que criou o CIAMP-Rua, consolidou a política nacional e, sobretudo, definiu a população de rua como grupo heterogêneo: crianças, mulheres, pessoas egressas do sistema de justiça, LGBTQIA+, idosos, entre outros. Ao reforçar essa heterogeneidade, Malu frisou que não pode haver solução única, pois necessidades distintas exigem respostas distintas. Essa premissa é a base do discurso que seu departamento vem defendendo, políticas “com a rua, e não para a rua”, reconhecendo as pessoas em situação de rua como sujeitos políticos e não objetos de ação.
A diretora detalhou a conjuntura que levou ao surgimento do Plano Nacional Ruas Visíveis (2023). Até 2022, menos de 1% dos municípios e estados haviam aderido à política nacional. Diante do descumprimento constitucional, o STF interveio e definiu obrigações à União, aos estados e aos municípios. À União cabe coordenar, monitorar e propor plano de ação; aos estados e municípios cabe implementar, comunicar e proibir remoções forçadas. O Plano, estruturado em sete eixos, envolve aportes próximos a um bilhão de reais. Entre suas inovações, Malu destacou a implementação do programa Moradia Primeiro sob coordenação federal, ruptura com a ausência histórica de política habitacional específica em escala nacional para essa população.
Outro ponto estratégico da fala foi a tentativa de organizar a governança federativa por meio do Integra PopRua, um questionário com mais de 80 indicadores destinado a diagnosticar capacidades e fragilidades municipais. Esse instrumento orienta pactuações entre governo federal e municípios, permitindo identificar prioridades por território. O mapa de adesões, porém, evidencia concentração no Sudeste e baixa presença no Centro-Oeste, Norte e Nordeste, o que reforça desigualdades regionais.
Malu também apresentou o serviço Cidadania PopRua, recém-implantado em 21 municípios e no Distrito Federal, com equipes técnicas preparadas para atender casos de violações de direitos. Por fim, expôs problemas estruturais que impedem a política de avançar: ausência de fluxo federativo claro, insuficiência de financiamento continuado para SUS e SUAS, falta de prioridade habitacional permanente, ausência de regras nacionais sobre apreensão de pertences durante ações urbanas, inexistência de política de trabalho digno e falta de políticas de prevenção à situação de rua. O diagnóstico é simples, embora nada trivial: sem intersetorialidade real, pactuação federativa funcional e financiamento contínuo, a política nacional permanece frágil.
Articulação precária e orçamento tímido: apontamentos do controle social
A conselheira Sheila Costa Marcolino, do CIAMP-Rua Nacional, retomou o panorama apresentado por Malu, mas construiu leitura crítica sobre sua implementação. Para Sheila, a pergunta feita durante o seminário, “qual é a resposta efetiva do Ruas Visíveis?”, revela que estados e municípios ainda não se reconhecem como corresponsáveis pela execução da política. A ausência de pactuação federativa sólida impede avanços concretos.
Segundo Sheila, quando chegou ao CIAMP-Rua, a primeira versão do plano listava um conjunto de ações que já existiam antes da ADPF 976 (STF), mas que não haviam dado conta da complexidade da vida nas ruas. O problema não é a existência dessas ações, mas sua incorporação sem reformulações estruturais e sem diretrizes robustas. Além disso, o orçamento é tímido diante da magnitude das demandas, o que limita o impacto das ações.
A conselheira relatou ainda a baixa participação ministerial. Apesar de o plano envolver 14 ministérios, apenas alguns comparecem de forma consistente, como Mulheres, Saúde e Assistência Social. Outras pastas, particularmente Educação, demonstraram dificuldade para conceber ações destinadas à população em situação de rua, o que revela ausência de referências e de compromisso cotidiano.
Sheila destacou que o CIAMP-Rua apresentou ao governo federal uma versão comentada do plano, eixo por eixo, com indicativos e análises, buscando maior precisão, prioridade e coerência política. No entanto, a lacuna federativa e a fragilidade interministerial seguem como obstáculos centrais.
Plano imposto, exclusões estruturantes e a defesa da potência da rua
A fala da conselheira Laureci (Laura) Dias, também do CIAMP-Rua, operou como contranarrativa, desta vez a partir da rua e de sua experiência encarnada. Mulher negra, sobrevivente de 20 anos de uso abusivo de álcool, crack e cocaína, há oito em abstinência, Laura narrou como se tornou militante, alcançou assentos em órgãos públicos e assumiu a coordenação da comissão de Mulheres, Gêneros e Raças.
Sua crítica principal é que o Ruas Visíveis chegou pronto, sem participação efetiva, “de cima para baixo”, mantendo a lógica histórica de deslegitimação do conhecimento produzido pelas próprias pessoas em situação de rua. O movimento aceitou o lançamento apenas mediante acordo de que mudanças estruturais seriam discutidas posteriormente, processo que ainda ocorre.
Laura reforçou o diagnóstico de Sheila: dos 14 ministérios citados, apenas três participam de forma efetiva. Essa ausência revela descompromisso e reforça a percepção de que, para parte do governo, a população de rua segue sendo objeto de ação e não sujeito político. A conselheira expôs omissões graves do plano: mulheres, crianças e adolescentes não estavam incluídas inicialmente. Só foram inseridas após intensa mobilização. Essa exclusão, afirmou, é inadmissível diante da especificidade das violências enfrentadas por mulheres nas ruas, como estupros, retirada compulsória de filhos, falta de assistência psicológica, ciclos de revitimização e abandono institucional.
Outro eixo de denúncia foi a cota de 3% do Minha Casa, Minha Vida. Prefeitos e gestores locais resistem à aplicação da regra, burlam adesões e seguem impunes. A penalidade atual, retirada de recursos, pune a população, não o gestor. Por isso, Laura exigiu punições exemplares por parte do Governo Federal e do Ministério Público.
A secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Janine Mello, reconheceu a qualidade do diálogo com o CIAMP-Rua e destacou o colegiado como uma das instâncias mais qualificadas de participação social no governo federal. Ela ressaltou que, após anos de bloqueio institucional, o país vive um processo de reconstrução do diálogo. No entanto, o Executivo ainda enfrenta limitações importantes para coordenar políticas intersetoriais voltadas à população em situação de rua, especialmente diante da complexidade de mais de 5,5 mil municípios. Janine afirmou que já existe clareza sobre o que precisa ser feito, mas o avanço tem sido insuficiente frente à urgência, razão pela qual defende a reformulação do Plano Ruas Visíveis com validação direta do CIAMP e escuta da rua. Reconheceu limites orçamentários, mas reiterou o compromisso do MDHC e de ministérios parceiros em ajustar o plano e seguir avançando.
Laura também criticou ações de zeladoria urbana que confiscam pertences sob justificativa de limpeza. Em seguida, reivindicou cotas em editais, conferências, cursos e universidades, denunciando que a população de rua segue excluída até mesmo de espaços participativos. Narrou histórias pessoais para demonstrar que a ida à rua é, muitas vezes, a única saída para escapar da violência doméstica. Por fim, reafirmou a potência política e humana da população de rua, afirmando que há vida após o crack, há formação acadêmica, há trabalho e há reconstrução. O que falta é acesso a condições mínimas, como banho, abrigo, roupas e documentação, para disputar vagas no mercado de trabalho.
A consolidação das falas revela três camadas articuladas: o marco institucional apresentado por Malu, estruturado, legalmente definido, mas insuficientemente implementado; a crítica técnico-política de Sheila, que evidencia ausência federativa e interministerial, orçamento frágil e plano pouco responsivo; e a denúncia vivida por Laura, que expõe políticas impostas, exclusões estruturais, violência cotidiana, mas também potência transformadora.
Entre o desenho no papel e a transformação real, o abismo segue sendo a rua, ainda invisível para parte do Estado. As três falas convergem numa urgência inequívoca: sem participação real das pessoas em situação de rua, pactuação federativa funcional e responsabilização concreta de gestores, o Plano Ruas Visíveis não se torna política; torna-se apenas texto, não sai do papel.
Legenda da foto: Da esquerda para a direita, Janine Mello, Laureci Dias, Sheila Marcolino e Maria Luiza Gama.













