Pe. Júlio Lancellotti: Políticas públicas mantêm pobreza e sacrificam população de rua

No Seminário Internacional sobre População de Rua: Cuidado Integral e Direitos Já, realizado na Fiocruz Brasília, a tônica foi de enfrentamento, autocrítica e reposicionamento ético diante do sofrimento extremo imposto às pessoas em situação de rua no Brasil. A fala de Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, traduziu o clima do encontro: nada de celebração, mas de denúncia. Ele rejeitou a distância simbólica do púlpito, preferindo “falar de baixo” , e chamou atenção para estruturas de poder que naturalizam a miséria, cristalizam práticas institucionais inofensivas e submetem trabalhadores e organizações a uma lógica neoliberal que trata a política pública como mecanismo de manutenção da pobreza.

Sua intervenção confrontou abertamente a captura de agentes e instituições por lógicas de capital, especulação imobiliária e agronegócio; criticou projetos “mumificados” que servem ao poder e não às pessoas; e evocou o dever ético de resistir, propor e desobedecer quando necessário. A denúncia é contundente: enquanto o capital é sacralizado, os pobres são sacrificados. Para Lancellotti, a pergunta central é: a quem estamos servindo?
Ele defendeu práticas insurgentes e comunitárias que recoloquem a vida, e não metas, relatórios ou financiamento, no centro da ação.


Ao final de sua fala, Lancellotti cedeu a palavra a Rafael Machado, pessoa trans, coordenador nacional do Movimento da População de Rua em Alagoas e conselheiro/a nos Conselhos Nacional de Assistência Social e de Justiça. Rafael questionou a ausência de pessoas trans e outras identidades LGBTQIAPN+ na programação e no desenho das políticas de cuidado dirigidas à população em situação de rua. Sua intervenção foi direta: como falar de cuidado integral quando a pauta LGBT, especialmente a pauta trans , segue invisibilizada?

Rafael lembrou que o fenômeno da população LGBTQIAPN+ em situação de rua cresce, enfrentando violações sucessivas, mortalidade elevada, exclusão e abandono. A crítica central recai sobre um campo de cuidado estruturado prioritariamente a partir da matriz cisgênera, ignorando demandas específicas , inclusive de saúde , de quem precisa transicionar sem suporte especializado. A fala ressaltou os riscos de hormonização feita por conta própria devido à ausência de endocrinologistas, atendimento qualificado e acolhimento no SUS: risco de trombose, ataques cardíacos, desassistência generalizada.

Rafael narrou sua trajetória: 14 anos vivendo nas ruas, sobrevivente de sete tentativas de homicídio, e hoje, prestes a se formar em Serviço Social graças às políticas públicas que, em suas palavras, “mudaram minha vida”. Mãe adotiva (seu filho tem seis meses) sublinhou que há necessidades específicas não contempladas: se não menstrua, ainda assim enfrenta necessidades reais de saúde integral e de reconhecimento institucional.

A crítica se expandiu para o mercado de trabalho, que segue excludente: enquanto se fala de mortalidade entre homens e mulheres cis, população trans permanece marginalizada, empurrada à prostituição, exposta a violências extremas e criminalização.

Recuperando a máxima “nada sobre nós sem nós”, Rafael insistiu na representatividade efetiva nas mesas de debate e nas políticas, e contou experiências de inclusão construídas pelo movimento — como a ação anual que leva mais de 300 pessoas em situação de rua a um parque aquático em Alagoas, não apenas com lazer, mas como gesto político de pertencimento e dignidade.

Por fim, afirmou sua disposição para “causar”, porque causar (provocar deslocamento e desconforto) é parte da luta. “Eu não luto para vencer; eu luto para ser fiel até o fim.”
Sua presença neste seminário, disse, é marca viva da resistência LGBTQIAPN+ na rua e na política.


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